sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Anatografia, por Robinson Machado


Dessecaria o subcutâneo do espírito que ainda me habita, com a incisão dos seus movimentos a partir da minha retina, Mona Sofia. Beberia as lágrimas dos canais de Veneza, buscando o que sobrou do seu aroma; trocaria o sangue das minhas artérias pelo perfume que já passou pelo teu corpo.


O acesso proibido aos seus pesares e amores; a falta e o excesso; a sua pele que dá marco zero à anatomia do belo – meu desespero. O que te torna impossível às minhas unhas são os séculos, ora, a erupção de edifícios, o jorrar de táxis entre ônibus entre vans entrecortados nas esquinas, nos prostíbulos paulistanos, nos ventrículos de Belém do Pará, para a massa, para a fumaça, os muros grafitados de desdém. Pode o amor ser atemporal?, engulo seco o molhado da tua língua, da tua íris, teu clitóris, teu cadáver sepultado logo ali, tão longe, ainda que há tempos outros. Nós, os outros. Outro agouro ao verter a saliva em desejo pelo inexistir. A plenitude do amar o amor vago da ficção. Busco sua voz no tom da operadora do zero oitocentos, o seu toque num esbarrar na fila dos ingressos do teatro.


Trocaria meu tecnológico pelo teu arcaico beijo, ou algum lampejo de ira e sedução obrigada. Do abrigo do teu peito público, fugiria deste futuro em que fui arremessado, deste lugar tão distante de onde jaz o que sobrou da sua graça. Somente para ser seu, te dar o que tiraram.
Teu feminino costurado na pele da minha nunca, para nunca mais te querer assim. Teus merecimentos ofertados para que possa desprezar, se quiser. Falo arrancado por teus dentes em troca do seu sorriso. Procuro os vestígios do seu conceito nos olhos das mulheres todas, nas mãos delas. Tê-las em você em segredo então. Em tão poucos cortes posso abrir o peito e encontrar o vazio da obsessão por uma idéia sem cor, sem vida. Escancaro o diafragma de uma máquina fotográfica pra te ver na sombra, pela sombra, me assombrando entre as frestas criadas por bisturis.



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*Inspirado no livro "O Anatomista", de Federico Andahazi / Foto: Robinson Machado (ensaio Amor Veneris)

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